segunda-feira, outubro 02, 2006

Lula e sua Estrela

Em época de campanha eleitoral um título como esse pode ter um significado óbvio na cabeça de um povo. Porém, eu vou falar sobre um Lula que a maior parte da população sequer imagina que existe. Não sei se ele tem todos os dedos das mãos, se tem barba ou não, se fala bem ou não. Sei que é uma pessoa bastante humilde e que faz de sua vida diária uma luta por sua sobrevivência, como cada um de nós.

Sua Estrela não brilha, nem tampouco se vê estampada em uma bandeira vermelha. Sua Estrela vive presa à um toco, ao lado de uma barraquinha de doces. Se tantos de nós podemos amarrar nossos sonhos à alguma coisa ou à alguém, sem jamais desfazer o nó, por que Lula não deveria amarrar sua Estrela em um toco?

A Estrela de Lula não tem cinco nem seis pontas, mas tem quatro patas, protegidas por cascos bem fortes. Ela não emite luz nem brilho, mas sons estranhos transformados em relinchos e vive amarrada ao toco porque além de ser um animal de estimação, é também o único meio de transporte do qual Lula se utiliza todos os dias para chegar até o trabalho, que se resume em uma barraquinha de guloseimas no bairro Campos do Iguaçu.

Lula e sua Estrela são personagens reais de um acontecimento na minha vida que foi marcado pelo abandono, egoísmo e desespero. Também se fazem presentes nesse acontecimento minha irmã Angela e suas duas amigas: Cláudia e Wanda. Este relato é quase todo narrado no presente, ainda que tenha ocorrido há mais de vinte anos, tão vivas ainda são minhas lembranças.

Mais um dia como todos os outros: meus três irmãos acordam cedo para ir à escola, enquanto eu, por ser ainda muito pequena, posso me dar o direito de manter meu cobertor aquecido por mais algumas horas. O carinho excessivo e superprotetor de minha mãe faz com que eu preguiçosamente levante da cama e me dirija direto à mesa. Com os olhinhos ainda repletos de remelas, eu bocejo olhando para os lados e para os gatos no chão da cozinha. Uma fresta de sol entra pela porta e ofusca minha visão. Mãezinha me serve uma xícara de café preto e uma fatia de pão caseiro com margarina e chocolate em pó, uma opção que ainda é bem-vinda nos dias atuais.

Terminado o café da manhã e a louça estando limpa, minha mãe faz a busca por roupas sujas nos três dormitórios da casa, deixando cada um com a cama arrumada. Enquanto escuto minha mãe agitada de um lado para o outro, ligo a tv no Xou da Xuxa e sento para assistir ao programa.

Logo me sinto entediada e procuro algo mais divertido para fazer. Vou até a garagem. De lá, posso conversar e brincar com meu vizinho Denis. Nos fundos do terreno está minha mãe, virando todas as roupas do lado avesso para serem lavadas à mão, ouvindo o programa do Santana, numa rádio AM. Minha mãe sempre disse que roupas precisam ser lavadas do lado avesso, o que eu sempre ignorei.

Eu e Denis rimos bastante, conversamos, corremos e fazemos pulseirinhas com raminhos de maracujá. Tudo isso com um muro bem alto entre a gente, tão alto que eu precisava estar em pé em uma cadeira para poder ficar próxima de meu amigo. Ele era, naquela época, meu único amigo de verdade e só hoje eu me dei conta disso.

Nossas pulseiras de raminhos de maracujá eram tão lindas e divertidas quanto os colares que fazíamos com os caules de folhas de mandioca. As crianças de hoje não têm idéia do que é se divertir com algo tão simples. Muitas sequer têm idéia de como é um pé-de-maracujá ou de mandioca.

A manhã passa rapidamente e minha mãe, com as roupas todas estendidas, começa os preparativos para o almoço. Meu pai nunca almoça com a família. Ele trabalha em turnos intercalados e sofre dos nervos por tanto incômodo em seu trabalho. Por trinta dias corridos ele trabalha em horário integral e normal e nos trinta dias seguintes, trabalha no período noturno. Não há quem agüente uma rotina dessas com um resultado saudável. É nessa época que ele passa a tomar chá de tília, uma planta tida como calmante nas terras paraguaias que fazem divisa com nossa cidade, Foz do Iguaçu.

Enquanto minha mãe tenta agilizar o almoço eu fico ao seu redor, às vezes agarrada à sua cintura esperando por um colo, outras, dando à ela “presentes” que já foram dados outras mil vezes, tudo no intuito de chamar sua atenção. Quando nada disso resolve, uma boa conversa “tatibitati” sempre funciona.

O ônibus escolar pára em frente a nossa casa e o alvoroço está feito. Rose, a mais velha, está em seus últimos anos de escola, comenta sobre as aulas e suas amigas, sobre seu trabalho na farmácia do Moisés ou sobre os Menudos. Angela, a próxima em escala decrescente, sempre com a boca cheia de palavrões, faz piadas sobre alguém, discute antecipadamente com Rose sobre os serviços domésticos ou implica com Toni. Este, por sua vez, arteiro como só ele, entra no cercado todos os dias com o mesmo objetivo: escapar são e salvo do Chico.

Chico é nosso cachorro pastor-alemão que foi trazido ainda bebê para casa e desafiado por Toni com um besouro dentro de sua orelha. Chico nunca esqueceu de alguém que tenha lhe dado carinho ou lhe feito mal, razão pela qual meu irmão estava sempre tentando se proteger dele. Na chegada da escola, a atitude de maior segurança para Toni era escalar a torre de madeira que servia como suporte para a caixa d’água, enquanto minha mãe colocava Chico na corrente.

Almoçamos na mais perfeita desordem e a muito custo conseguimos a cozinha limpa outra vez. Rose vai trabalhar, Toni vai brincar na rua, a mãe vai tirar uma soneca e a Angela tenta comunicação com Wanda, a vizinha do lado direito. O calor à tarde é sempre infernal e eu normalmente tenho brotoejas por causa disso, apesar de ser a única considerada morena entre meus irmãos. Sem a posse de um telefone em casa, Angela usa de sua criatividade para chamar a atenção de Wanda: escreve uma mensagem em uma folha de caderno e “embrulha” um maracujá com essa mesma folha, atirando a fruta em direção à casa da vizinha.

Algum tempo depois estão Cláudia e Wanda lá em casa e eu, ainda querendo e precisando de atenção e simplesmente sobrando. Enquanto Angela já é adolescente, eu sou apenas uma pirralha, uma responsabilidade a mais que meus irmãos não se mostram dispostos a ter.

Faço pedidos de possíveis passeios à minha irmã. Sua resposta imediata aos meus apelos é escrever o nome de cada lugar em uma folha de papel separada e conforme eu digo onde gostaria de ser levada, ela coloca a respectiva folha no chão, me ergue pela cintura. Me coloca sobre a folha e exclama: “-Pronto! Você já está em tal lugar!”

Com bastante de choro eu consigo fazer minha companhia presente no curto passeio sem propósito que elas decidem fazer. Andar três ou quatro quadras para ir até a barraquinha do Lula comprar balas e chicletes é a atividade mais excitante que se pode fazer com uma pirralha à tiracolo, especialmente porque a boca dela pode ser logo entupida com doces, impedindo sua intromissão no assunto das mocinhas.

A barraquinha é a mesma de sempre, Lula também, mas Estrela se mostra inquieta em nós que a prendem ao toco. Não consigo lembrar se sobra troco na compra feita ou como aconteceu, só sei que Estrela, a égua chucra, se solta e todas corremos no mesmo instante.

Essa imagem nunca saiu do meu pensamento, nem meus batimentos acelerados, nem meu sentimento de impotência e desespero.

As três meninas correm como nunca e eu procuro fazer o mesmo, mas ninguém percebe que eu também estou ali e que sou a caçula, que deveria ser protegida pelos mais velhos. Ninguém lembra, nessa hora, que além de tudo eu sou asmática e a distância e velocidade que posso correr é limitada. Nos meus rápidos olhares de relance, tudo o que vejo é o animal chegando cada vez mais perto de mim, ouço seu pocotó acelerado e sinto que já não posso mais. Olho para frente e todas as meninas desaparecem no asfalto.

Como nos desenhos que assisto no Xou da Xuxa, aparece aquele arbusto bem do meu lado e eu, quase em câmera lenta pulo nele de uma vez só. O som do pocotó se torna aos poucos mais distante, talvez porque a égua já esteja longe, talvez porque meu choro convulsivo seja muito mais alto que o barulho dela.

É grande a probabilidade deste ter sido o maior risco que enfrentei e que precisei encontrar uma solução sozinha. Talvez Estrela nem fosse perigosa, talvez o pulo que dei nem tenha sido tão necessário, talvez as meninas nem tenham corrido tanto, porém, o que minha memória pueril registra é um enorme obstáculo a ser vencido, sem poder contar com a ajuda de niguém, um caso de “vida ou morte.”

Não sei como Estrela foi resgatada. Não sei se Lula precisou fechar a barraca para ir à sua busca. Não sei até onde as meninas correram nem quando se deram conta de que eu pudesse estar precisando de sua ajuda.

Sei que tudo foi resolvido, exceto pelo trauma que passei.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lia desculpe... éramos todas crianças. Mesmo sendo criança me redimi dessa falta mais ou menos na mesma época no galinheiro. Sou
sua heroína. A melhor das drogas que poderia te acompanhar a vida inteira.E o besouro não estava nas orelhas do Chico, mas nos testículos, que disso eu lembro. Beijo/ Angela