quarta-feira, agosto 16, 2006

Palavras encharcando uma folha de papel

Nascida em fevereiro de 80, reflexo de uma pílula anticoncepcional esquecida, Líliam teve sua infância atribulada por testes de cobaia realizados por seus irmãos mais velhos. O primeiro aconteceu no seu sétimo dia de vida, quando uma de suas irmãs não ouviu os apelos da mãe para que deixasse o neném sobre a cama enquanto ela ia ao banheiro. Angela não se conteve: viu aquela bonequinha de porcelana e decidiu testar sua resistência, ficando apenas com o cueirinho nos braços, enquanto a pequena Líliam exercitava seu timbre mais agudo na esperança de que alguém a recolhesse do chão. Este primeiro teste resultou em uma despadronização do crânio, o que pode ser facilmente comprovado através de um simples exame de toque. Tornou-se, então, impróprio o uso de qualquer acessório de adorno para a cabeça ou cabelo, o que implicou em vários complexos sofridos desde muito cedo pela vítima.
Foi batizada na igreja católica e optou por vontade própria ser catequisada e crismada. Se revoltou contra o catolicismo após um arranca-rabo sobre discriminação e religião com o padreco da comunidade a que seus pais pertencem.
Aos quatro anos foi alfabetizada pelos irmãos mais velhos, o que lhes trouxe o pânico de ter todos os seus segredos diretamente transmitidos aos pais, como pena do não cumprimento dos desejos expressados pela mesma.
Pessoa de extremos: tímida, extrovertida, ingênua, maliciosa.
Sendo testemunha ocular de assassinatos contínuos e constantes de grandes quantidades de lambaris na casa de seus próprios pais, que mais tarde seriam cobertos por uma mistura de ovos batidos e farinha-de-rosca e em seguida mergulhados em óleo quente, teve a degustação por toda e qualquer espécie de frutos-do-mar completamente comprometida para o resto de sua vida.
Se entregou aos vícios em idade precoce, fumando passivamente até quatro maços de cigarros diários na companhia de seu pai. Também foi contemplada com uma herança genética carregada com doses expressivas de álcool, que foram publicamente consumidos por quatro gerações. Estes fatos fizeram com que Líliam não optasse por dois dos tipos de morte mais evidentes em sua família: a cirrose e o câncer de pulmão. Hoje se contenta apenas com a sensação de bem-estar trazida pela queima noturna de incensos em seu ambiente pessoal.
Durante seu crescimento, desenvolveu teorias próprias sobre convívio familiar e relacionamentos de sucesso, motivo pelo qual, além de solteira, ocupa um apartamento de três quartos, dos quais dois se encontram completamente vazios.
Não costuma ingerir frutas. A idéia de não consumir frutas é justificada pela falta de entusiasmo no que se refere à execução do processo de ingestão da fruta. Consideremos, por exemplo, uma laranja. Chupar uma laranja é uma atividade que requer tempo e bom condicionamento da musculatura facial. Durante o mesmo tempo gasto com esta atividade, seria possível ingerir muito mais se o suco da laranja tivesse sido previamente espremido.
Grande amiga de Pollyanna Harrington, sua personagem favorita de todos os livros que já leu. Foi com Pollyanna que passou a pintar de cor-de-rosa seus pensamentos mais escuros e, como a personagem, espalha o “jogo do contente” por onde pode.
Contra sua vontade, vem colecionando namorados desde os quinze anos. Ao longo deste prazo, tem aprendido muito com cada um deles e, se fosse preciso, estaria apta a publicar algo como um Guia Prático, onde relataria passo a passo situações que levantam a questão sobre o mistério do comportamento masculino, como por exemplo, “FICAR” COM UM MESMO HOMEM POR ATÉ CINCO MESES E NAMORÁ-LO POR APENAS UM DIA.
Durante os seis anos em que viveu nos Estados Unidos, aprendeu a conviver com os defeitos e qualidades de cada um e a partir daí deixou de julgar o que é certo ou errado, admitindo que tudo tem mais de um ângulo para ser analisado, podendo ser tanto positivo quanto negativo, dependendo do ponto de vista.
Simpatiza com as comunidades espírita, protestante e hare krsna, mas não segue nenhuma dessas pela falta de total adequação ao que lhe é proposto. Generalizando, acredita na existência de Deus, anjos-da-guarda, espíritos, gnomos, reencarnação e Papai Noel, mas jamais conseguiu absorver totalmente a idéia de que tudo o que se lê na Bíblia tenha sido fato.
Também simpatiza com pessoas dóceis, sorridentes e felizes.
Se mostra a favor do direito à união civil entre indivíduos do mesmo sexo, pois esta nada mais é que um contrato, portanto, deveria estar ao alcance de todos.
Simples e geralmente autêntica, aprecia comer pão com margarina e nescau no café da manhã e, não se importando com as críticas da oposição, jamais deixará de saborear um bom miojo de galinha.
Tem verdadeira paixão por tomates de todas as qualidades, a única atividade culinária que realiza com sucesso é um prato italiano, que tem como característica principal um molho de tomates picados, acompanhados de manjericão, alho e filezinhos de peito de frango. Esse prato já foi apreciado por muitos que tiveram o prazer de serem convidados para cear em sua casa, o que geralmente é um acontecimento único e solene, pois um segundo convite implicaria na necessidade de uma outra receita de sucesso.
Defende a idéia de que alguns de nós, humanos, não descenderam dos macacos, mesmo apresentando diversas semelhanças. Segundo ela, tais seres assemelham-se muito mais aos nossos conhecidos eqüinos, desde a maneira como se expressam de forma verbal, bem como sua pronta auto-defesa, onde usam de seus membros inferiores para atingirem seu alvo.
Temperamento e vida sexual instáveis, bem como seu cabelo e senso de humor. Não é adepta do sexo matinal, salvo se esta for a única possível, irrecusável e imperdível chance de acasalamento com o parceiro em questão. TPM marcada por sensibilidade e crises de choro intensas. Banhos e escovação dentária diários. Visitas freqüentes ao supermercado. Unhas raramente feitas, mas louças, roupas e banheiro em boas condições de uso.
Já trabalhou como secretária, garçonete, vendedora, assistente de RH, atendente, gerente e professora. Atualmente diverte algumas pessoas com curtos relatos de sua vida independente, onde conta como conseguiu com que uma panela pegasse fogo dentro do microondas, como se deixou perder em sua própria rua e ainda, como manteve uma barata entretida por quase duas horas até que conseguisse expulsá-la de sua casa sem o uso de medidas drásticas etc.
Amante das tradições, se emociona com desfiles de Oktoberfest, crianças, corte de cebolas e musiquinhas do caminhão do gás.
Já tentou tocar violino, mas uma súbita paixão pelo professor, que em sua cabecinha era Ralph de Bricassart, o padre do romance Pássaros Feridos, desistiu do tal instrumento e passou a se dedicar ao saxofone. Obteve maior sucesso no aprendizado deste segundo instrumento, porém o mesmo era extremamente pesado para um pescoço tão frágil, que fazia com que ela se curvasse quase até o chão durante os ensaios.
Ainda este ano resolveu dar mais um crédito ao que acreditava ser seu talento musical. Procurou uma escola de canto lírico e teve a verdade escancarada aos seus ouvidos, que ao menos desta vez funcionaram, recebendo e aceitando a mensagem do professor, que lhe garantiu ser totalmente desprovida de noção auditiva no que se refere à música. Foi um momento delicado na sua vida, mas tem apresentado melhoras expressivas diariamente.
Sofre de asma, impaciência, rinite alérgica, sono, dor-de-cotovelo e insuficiência sacal.
Simpatiza com as diferenças. Diz que a perfeição traz consigo a monotonia, o que não é de nenhuma forma aceita por nativos do signo de Aquário. Apresenta forte tendência artística, especialmente em áreas que requerem paciência e criatividade.
Devido à falta de eficácia e rapidez ao expor verbalmente seus pensamentos, usa de uma forma alternativa de comunicação, que se dá a partir do uso de seus cotovelos. Dessa maneira, consegue reproduzir até mil palavras por minuto, mantendo a audiência na expectativa de sua sobrevivência estória após estória. Alguns dizem que em determinados monólogos, apresentou coloração cutânea diferenciada e falhas no sistema respiratório, porém, pagaram para ver, viram e continuarão vendo que ela ainda pode produzir bem mais.
Ainda sonha com sua foto de vestido de noiva emoldurada, tendo entre as mãos um buquê de orquídeas ou rosas vermelhas. Cogita-se a possibilidade de ter tal foto produzida em estúdio, em decorrência da não-viabilidade do acontecimento real.
Curiosamente, também almeja sua produção independente de filhos em série, caso as exigências pré-estabelecidas para o fluxo natural não forem cumpridas até o prazo final estipulado pela parte interessada.
Portadora de vias lacrimais híper ativas, se emociona com filmes infantis, lembranças, planos, flores, casamentos, nascimentos e demonstrações sinceras de carinho.
Comemorou seu último aniversário soprando vela de interrogação. Soprou tanto, a coitadinha, que a interrogação ainda paira no ar. Nos dias mais animados se camufla entre as horas, porém nos mais preguiçosos é tão evidente quanto o som de um relógio de parede em seu impiedoso tic-tac.
Já leu inúmeros artigos sobre como pessoas chatas conseguem se mostrar ainda mais chatas e irritantes quando insistem em falar ou escrever mais do que necessário, porém jamais tomou conhecimento de tratamento efetivo para essa disfunção neurológica.

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