sexta-feira, abril 21, 2006

memórias de uma vida escrava


Sim, eu sempre exagero. Para quem me conhece, já sabe que faz parte do meu show, faz parte do meu show, meu amor, meu amor... hehehe... amo essa música...
Mas como eu ia dizendo, memórias de uma vida escrava ainda me acompanham, mesmo eu tendo sido abolida há mais ou menos um ano e meio. Hoje uma aluna me perguntou se eu conhecia DUNKIN DONUTS. Nossa... viajei... O Dunkin foi uma das minhas experiências escravas nos States. Cara, como eu me divertia!!! Também sofria muito
, mas acho que se colocasse numa balança, a diversão pesaria muito mais.
O sonho de quase todo imigrante ilegal nos Estados Unidos é ser dono do seu próprio negócio, que em 99, 99% das vezes significa ser o dono de um "schedule de limpeza". Falei grego??? Ok, me farei entender. Schedule (qdo ainda não entendia inglês pensei que essa fosse uma palavra em alemão, tipo Schindler - não o da lista de Schindler, mas a marca de elevadores) significa algo relacionado com horários, programação, algo assim. Então, um schedule de limpeza nada mais é que uma clientela formada, com dias da semana, horários e preços de faxina formatados. Normalmente as pessoas que trabalham com isso fazem um bom dinheiro, pois exploram os recém-chegados no país para o serviço mais pesado enquanto eles se encarregam de receber os dólares e elogios...
Para a outra parte da população ilegal, o sonho consiste em um trabalho que seja pago em cash, assim a declaração para o governo é quase nula e o dindim cai todo no teu bolso. Resumindo tudo, a grande maioria vai para os Estados Unidos só para trabalhar e juntar uma grana mesmo, então pouco se importam em aprender a falar inglês para conseguirem um trabalho bom de verdade e com as poucas palavrinhas que conseguem balbuciar, acabam por conseguir emprego em restaurantes do tipo fast food, como Mc Donald's, Burger King, Taco Bel, KFC, Dunkin Donuts e por aí afora.
Eu fui trabalhar no Dunkin em 2001. Já falava inglês legal, mas como o transporte público em Boston sucks, eu tinha que trabalhar em algo que fosse perto da minha casa, pois não tinha carro nem carteira de motorista.
Tinha uma amiga minha que trabalhava num Dunkin em Melrose. E eu, nessa época, morava em Revere e trabalhava durante a semana na Jasmine Sola, na Harvard Square, em Cambridge. A Alessandra, essa minha amigona, se ofereceu para me levar até lá e tentar conseguir um part time, só para os fins de semana.
Lembro muito bem da impressão que tive do meu futuro chefe... alguém que provavelmente teve uma vida muito fudida aqui no Brasil e via a si próprio como a perfeição em pessoa por ter alcançado uma posição que lhe garantia um pouco de status como "gerente" daquele muquifo. Como dizíamos por lá, se o dono tomasse banho de banheira, o Jordan nunca morreria afogado por estar sempre grudado nas bolas do Todo-Poderoso. Bom, fui lá, preenchi a ficha, dei um sorrisinho simpático e prometi cópia dos meus documentos frios. Tudo arranjado. A melhor parte desse dia, foi quando tirei a máquina fotográfica da bolsa, alcancei para alguém e sentei no balcão, segurando uma plaquinha entre as minhas pernas. A placa dizia PLEASE ENTER HERE e na verdade sua função era simplesmente organizar a fila, mas naquela noite me fez muito feliz... Gosto muito daquela foto e mais ainda da blusa de lã azul que eu estava usando, que esqueci na casa da Juliana e nunca mais a vi...(a blusa...).
A partir desse dia, eu trabalharia sábados e domingos no Dunkin da Main Street, em Melrose.
No primeiro dia de trabalho a gente sempre fica meio perdido eu já estava preparada para isso, por isso não estava esperando receber tips de ninguém. Aliás, todo o trabalho que dá tips, normalmente você só passa a receber depois de ter aprendido o serviço, ou seja, depois de uns 3 ou 4 dias. Eu me saí muito bem atendendo os fregueses naquela manhã de inverno. O cheiro forte do café e excesso de açúcar me deram um pouco de náusea, mas era preciso agradar o Jordan então mantive os lábios esticados o tempo todo para que todos pudessem verificar minha dentição e me acharem uma simpatia de pessoa.
A dozen donuts, please. Small, skin milk, 3 sugars, melt the sugar, all right? Large Iced, no sugar, extra cram on top. Three boston kremes, a glazed one, banana nut muffin, do you have poppy seed bagles?? Napkins, there are none out here. Excuse me, can I use the restroom? I'm waiting on my coffee. Where is the line? Oh, it was my turn. Can my dog come in too? I want a jelly munchking for my baby. Here, take it. Keep the change. Dunkin girls are so pretty. I said large hazelnut and not french vanilla! This tastes like syrup, what did you put in here? Are you deaf? What?? Sorry, I can't understand a word of what you're saying. Where is your accent from? Excuse me, where is the manager? I didn't orderd this. Okay, I am brewing some coffee. Change, please, I need more change! So you are out of chocolate chip muffin???? I said milk, not cream. Hum, this is delicious. Hey, the usual! Keep the change. Egg, cheese and bacon, medium french vanilla no sugar, small regular extra cream, 2 sweet'n'low, extra large regular 10 sugars, 2 squirts of milk, small iced, medium cappuccino, half dozen donuts, what else? did I forget my order? I am a penny short. How long for my sandwich? Is this the line? Are you new here? Can I taste that donut on the right corner, no, not that one, the one below that, yeah, no, the other, to the side, with the sprinkles on it. Give me a knife. Do you have strawberry jelly? He forgot my sandwich in the microwave. I just need a croissant. Raisin bagel. You got it. You too. The snow is beautiful today! Large skim no sugar. Thanks a lot. You can go ahead. Wonderful. Fuck it!
E assim minha manhã passou... Dei conta de operar o caixa, descobrir quais eram os botões para cada ítem a ser registrado, sorrir, fazer milhares de café e aprender o nome de tudo que era vendido lá. Ao final do turno, os cinco funcionário antigos se reuniram para contar as moedas deixadas como gorjeta pelos clientes e quatro deles reconheceram meu esforço e quiseram me dar uma gratificação pelo bom trabalho que fiz. Ganhei seis dólares das 8 da manhã até duas da tarde, mais o combinado por hora, que viria mais tarde em forma de cheque. A única que não quis me dar nenhuma contribuição foi a Andreza, a quem eu chamava Panda, pelas olheiras sempre muito aparentes. Ela justificou dizendo que eu era trainee e trainees nunca ganharam tips, nem ela qdo começou. Mas trainee algum havia operado o caixa ou atendido clientes sem ajuda de um veterano, como eu havia feito. Senti nesse gesto egoísta e mesquinho uma pontinha de inveja...
As pessoas do turno matutino foram todas para casa e eu fiquei. E a portuguesa também. Não lembro o nome dela. Só sei que era nascida nos EUA, tinha 19 anos e era casada com um rapaz de Cricíuma que não valia nada. Ela misturava o português de Portugal com o do Brasil e um pouco de inglês para falar do filho Tiago, razão do casamento malfeito. Ela tinha um Piu-Piu tatuado no seio, que ficou parecendo um Papa-léguas, depois de ter amamentado o neném. Ela seria uma mulher bonita, mas com o descaso do marido que vivia na gandaia, acabou entrando em depressão e engordou muito, o que só contribuiu para tornar o que já era ruim em pior ainda.
O movimento sábado a tarde era bem pacato, então aproveitei os únicos 15 minutos de break que eu tinha para ir até o mercadinho que ficava logo ali e comprei mortadela fatiada com gordura e um pão bengala. Os meninos no mercado cochicharam muito enquanto eu estive lá. Voltei para o Dunkin e me realizei sentindo cheiro de algo que não era por incrível que pareça, coberto de açucar!
Mais ou menos às 21:30hs estávamos saindo de lá. Eu bem contente com os seis dólares e ela discutindo com o marido no carro. Ganhei carona até em casa.
Cheguei em casa e me senti no céu. Mas como para chegar ao céu preciso ser pura, para chegar até minha cama eu precisava estar limpa. Procurei uma sacola de mercado e comecei a tirar a roupa. O cheiro daquele café todo estava impregnado em tudo o que eu vestia, inclusive na minha pele. Coloquei o uniforme na sacola e a amarrei, pois usaria a mesma roupa no outro dia e não queria que aquele cheiro se espalhasse pela casa toda.
Como era inverno, liguei o chuveiro na temperatura mais alta que pude. Que delícia sentir a água quente escorrendo pelo corpo, depois de um dia tão longo. Mas pera aí, quem mais está em casa? A Alessandra está em Maine com o Stephen. A Patrícia em East Boston. O Tiago estava trabalhando. Quem, então, estava fazendo aquele café???
Eu sentia o cheiro do café no banheiro e uma sensação relaxante por causa da água quente. Eu mesma estava fazendo o tal café, tanto era o cheiro impregnado na minha pele e cabelo.
Quando me dei conta, estava chorando, confundindo lágrimas com café, espuma, shampoo e sabonete. Eu senti mais uma vez uma falta imensa da minha família, do meu quarto cheio de cupim no teto e do meu colchão ruim. Senti falta de poder passar o sábado fazendo crochê ou escapando de casa para namorar. E essas eram coisas que então eu não podia fazer. Precisava manter aquele emprego p/ me sustentar. O Fabio tinha voltado ao Brasil, eu estava por conta própria e tinha que aguentar o que viesse. Desliguei o chuveiro, enxuguei as lágrimas e o corpo. O outro dia estava próximo e eu precisava descansar, pois a jornada seria longa.

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